sexta-feira, 12 de agosto de 2016

38 Se eu fosse poeta (AAF)

Se eu fosse poeta,
destruiria toda a poesia possível.

O poeta não precisa de palavras.
Quero um poema de palavra nenhuma.

Sem palavra, o poeta vive melhor
e deixa que a poesia
se guarde onde quiser.

No Brasil, a poesia é um lixo
nas mãos de alguns delinquentes
que estão no poder.

Os poetas que ainda existem
estão escondidos no quarto
com o dedo no gatilho.

Quando eu desisti de mim,
fiz uma festa na minha casa
e convidei 14 poetas mortos
para um recital derradeiro.

Fugi depois para Portugal
em busca da poesia que me falta aqui.

Chamei Gonçalves Dias
para assistir ao meu exílio voluntário,
partindo comigo mesmo
num navio de sombras.

E antes de sair desse porto
afundado dentro de mim mesmo
para atravessar o Atlântico,
disse ao poeta
da Canção do Exílio:
– Gonçalves,
as aves que aqui gorjeiam 
não gorjeiam como lá.

A poesia me feriu a vida inteira,
o poema me feriu a vida inteira,
a palavra me feriu a vida inteira. 

Hoje vejo latas de lixo em todo lugar
repletas do que eles chamam de poema.  

Trabalho agora num circo brasileiro
e sou o trapezista das tardes de domingo,
sem a rede embaixo,
porque quero correr o risco.

Como um homem triste num parque,
gostaria de ler as líricas de Camões
e os poemas de Manuel Bandeira
para acreditar em alguma coisa.

No entanto,
o tempo é outro e a poesia não sabe.

Os poetas fugiram de si mesmos
para não morrer
nesse cenário de melancolias;

A poesia está na roupa do varal
e nos becos sem saída,
na amora que deixa a boca vermelha,
na fadista que canta sempre de olhos fechados,
nos amores imaginários de Álvares de Azevedo
e nas ovelhas tristes de Alberto Caeiro.

Mas agora é tarde:
só compreendi quando o poeta
que vivia em mim deixou de existir.

AAF – 24/07/2016 – 11h46

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