sexta-feira, 12 de agosto de 2016

1 Minha mão contém palavras que não escrevo (TCRM)


Minha mão contém palavras que não escrevo.
Quando penso nelas, elas se soltam –
Pássaros que não me atrevo a prender.

Cantam toda a vida, cercados de flores.
Eu que nem sussurro os seus nomes,
Eles que me dão as vozes que devo ter.

Posta-se ao meu lado o belo poema,
Adornado com sua própria beleza
E eu o contemplo, porque nunca o vi.
Ele vem e se senta como se me conhecesse.

Vê que belas palavras, ele me diz. Escreve.
Eu não consigo ouvi-lo, misturando-se
Sua voz aos sons da sala. Fecho os olhos
Para pinçar os versos que tremulam.

Vê, não deixarás de escrever.
Os versos te alcançam aonde vás.
Sigo-te por toda parte.
Sou o poema que mergulha em ti.


TCRM – 8/06/2016 – 22h32

2 Sigo-te por toda parte (AAF)


Sigo-te por toda parte.
Sou o poema que mergulha em ti.
No entanto, essa palavra não me basta,
como não me cabe
esse corte a mim destinado.

Estou me despedindo das pessoas
como se não fosse ver mais ninguém.
Esqueci-me das coisas
que não poderia esquecer.

Mas nem tudo é inesquecível.

Esqueci-me de mim no dia 13 de setembro
e até agora ando à minha procura
como se me quisesse encontrar.

Tenho conversado muito com alguns livros,
como se fosse a última vez.
Leio poemas antigos de poetas suicidas
e deixo que as palavras
escorram pelos meus dedos sem unhas.

Os versos que em mim tremulam
não me alcançam onde estou.

Tenho uma gaveta de cartas,
mas a chave desapareceu em 1929,
quando eu ainda não existia.

Com  meu casaco molhado
caminho as ruas
entre poças que engolem
meus sapatos sem rumo,
mas sei que não tenho aonde chegar. 


AAF – 10/06/2016 – 16h45

3 Mesmo que não tivesse aonde chegar (TCRM)


Mesmo que não tivesse aonde chegar,
Eu partiria em busca de mim mesmo
A quem conheço sobremaneira,
Porque as coisas acontecem 
De modo que as reconheçamos depois.

Sou eu mesmo que parto em qualquer direção,
Porque fui e voltei diversas vezes, 
Até me cansar e não me cansei de mim.

Quero o que é absolutamente óbvio, 
Absolutamente plácido, 
Absolutamente certo,
Porque nessas coisas se assentam as verdades.
E as verdades são maiores do que imagino. 

Eu estive aqui tantas vezes que sempre pude voltar
Pelo mesmo caminho que o torna conhecido.
Reconheci as faces que amei
E pude vê-las sem mim. 
Eu não precisava amá-las, mas eu as amei.

E por ser completamente certo
que a fadiga torna as coisas todas impossíveis, 
Parei ao pé de mim para descansar.
E somente assim tornei-as possíveis. 


TCRM – 12/06/2016 – 4h08

4 Parei ao pé de mim para me encontrar (AAF)


Parei ao pé de mim para me encontrar,
no entanto,
perdido no meu desaparecimento,
nas pedras de meu espanto,
sendo poeta,
ainda canto.

Na poesia meus desenganos, o passado
em que me observo, esse reino em que vivo
como um servo, tão longa vida em poucos anos.

A poesia apagada
está na mente que me consome,
as vírgulas em versos perdidos
que caem de meus dedos cortados.

O que me dói na poesia
é a morte da poesia,
o poema que se desfaz
em palavras que desaparecem.

Nada sei de mim ausente, do que em mim
se procura, uma dor que já não sente,
a doença que não tem cura,
o desviver inexistente
à luz de uma vela escura, a palavra
que me segura,
que em mim apenas mente.

No espelho essa figura que em mim
se desespera, está sempre à minha espera
com um pote de amargura.
Calo o que em mim se altera, a face tecida
nessa agrura, o que na pele se costura
nunca mais se recupera.

Ando nas ruas medievais,
onde me guardo
nas igrejas de santos solitários.
Mulheres tristes rezam
preces esquecidas,
as palavras que guardo em mim,
que não sei mais.

Escurece em minha volta
o dia que em mim termina,
tenho dois cachos de uvas
como um pássaro em minha sina.


AAF – 15/06/2016 – 10h52

5 Pássaros ditam minha sina (TCRM)


Pássaros ditam minha sina.
Não sou eu quem prevê o futuro,
Mas o preveem por mim.
Leem minha xícara de chá,
Cartas de tarô,
As linhas da minha mão,
Jogam búzios para me dizer
O que acontecerá.
Eu não sei o que acontecerá.
Não quero saber o que acontecerá.
Eu não estarei lá quando acontecer.

Prever o futuro no voo dos pássaros,
Nas entranhas da colmeia,
Nos veios das árvores,
No trajeto das estrelas
É ser profeta em causa própria,
E nem Cristo, em toda a sua glória,
Impediu a sua, mesmo ao vê-la.

Que sabemos nós de nós mesmos?

Ah, mas o poema responde,
Se lhe perguntam.
O poema traz a resposta,
Se lhe fazem a pergunta.
Eu não conheço as perguntas,
Mas eu tenho as respostas.
Estão todas nos poemas.

Escrevo para que as respostas venham,
Mesmo sem ler as linhas da mão,
Sem olhar as estrelas,
Sem xícaras de chá ou café,
Sem adivinhações baratas ou caras.

A vida não é para ser escrutinada.
É para ser apenas vivida.
E vivê-la deveria ser suficiente
Para compreendê-la,
Sem perguntar por quê.


TCRM – 15/06/2016 – 11h18

6 A vida é para ser vivida (AAF)


A vida é para ser vivida
sem perguntar por quê.

Mas eu desvivo.

Pouco me importa
os passos póstumos
que caminho todos os dias.

Nunca chego a lugar nenhum,
mas vejo as lojas de roupas
e as confeitarias
com doces de chantilly.

Isso me basta
para passar as horas
que não passam nunca
no meu relógio
que não marca nada,
já que o tempo
está parado nas esquinas
com as pessoas
tristes de sempre.

Por enquanto,
uso meu guarda-chuva vermelho
para esconder minha cara.
É o que me resta fazer,
ficar em mim,
na ferida que não sara. 


AAF – 16/06/2016 – 10h37

7 Para que servem os guarda-chuvas (TCRM)


Para que servem os guarda-chuvas
Senão para esconder o amor?
O que me resta fazer
É andar na chuva sem destino.
A vida é mais rara.
A vida é mais cara.
Tudo se tornou absolutamente desnecessário.

Necessário é dizer bom dia.
Necessário descer as escadas
E sair na rua.
Necessário tomar café com leite e pão com manteiga.
Necessário dormir quando se tem sono,
Acordar quando começa o dia,
E tudo ir seguindo seu ritmo sem rumo.

Para onde vamos que não sabemos onde estamos?

Tudo segue a ladainha de sempre.
Compra jornal, fala ao telefone,
Escuta o rádio, assiste à TV.
E a vida escoa como se não nos pertencesse.

O que fazer para torná-la nossa?

O relógio marca horas que não vejo,
A agenda guarda nomes que não leio,
Os livros têm poemas que não lembro,
E tudo vai se esgueirando por não ter mais motivos.

O motivo de ficar.
O motivo de ser.
O motivo de dizer.
O motivo de lembrar.

Eu me lembro de quando tinha nove anos.
E depois de quando tinha dezoito.
Quando tinha vinte e oito.
E agora aos cinquenta e oito,
Todo o tempo que passou virou névoa,
Lembrança, recordação, memória.

A minha vida só vale o que eu me lembro dela.
E o que eu não lembro, eu não vivi.


TCRM – 16/06/2016 – 12h20

8 A vida só vale pelo que dela se lembra (AAF)


A vida só vale pelo que dela se lembra,
mas não é esse o meu destino
neste espaço que ocupo
com meu casaco de veludo.

Prefiro não me lembrar de nada
e começo por esquecer de mim.
Estou sozinho  no quarto
à procura de um pulôver
para sair às ruas
beber um copo de veneno.

Guarda o poema
que trago no bolso,
escrito em setembro de 1815,
quando eu andava madrugadas
como se fosse um poeta doente.

Guarda o que escrevi
quando tudo era preciso,
menos escrever um poema.

Talvez encontre uma mulher
e viaje com ela para qualquer lugar
onde ninguém nos conheça.

Depois
ouviremos uma valsa brasileira.

Colocarei meus sapatos numa caixa
onde guardo alguns poemas
com o gosto vermelho das amoras.

Agora faz tempo
que não converso comigo
por falta de assunto.

Deixo-me ficar
onde estou adormecido,
com dois frascos de perfume
num lugar distante, desconhecido.


AAF – 18/06/2016 – 13h10

9 Deixo-me ficar num lugar desconhecido (TCRM)


Deixo-me ficar num lugar desconhecido
Por tempo indeterminado.

Já me perdi em lugares distantes,
Passei por portas que deveriam
Ter continuado fechadas
Por trás de cortinas pesadas.

Não é possível prever todos os perigos.
Não é possível manejar tão bem a espada e a palavra.
E a palavra antecede tudo que deve permanecer escrito.

Escolhemos o poema que nos lê.
Acolhemos a verdade em sua derradeira
Hora por sermos os últimos a transpor o que foi dito.

Deus escolhe seus discípulos.
Cada um leva a palavra a lugares desconhecidos.
Serei também um deles?

A missão do poema permanece intacta.


TCRM – 19/06/2016 – 16h27

10 A missão do poema permanece intacta (AAF)


A missão do poema
permanece intacta,
mas o poeta não sabe,
perdido que está
entre palavras inúteis
e uma poesia
que não existe mais.

A farsa de João Cabral
ensina a construir poemas
com uma fita métrica,
um edifício
que vai desabar amanhã.

Quero o poeta
que se espanta, esse mesmo
que se cala,
esse homem que se encanta
e adormece
na sala, como a raiz
de uma planta
para sempre
na raiz de sua vala,
com seu grito na garganta
no ponto
final de uma bala.

A poesia é árida e fere
como o golpe de uma faca,
esse corte sempre aberto
que o poema não absorve
perdido dentro de um livro
que nunca ninguém vai ler.

Os poetas morreram todos
e estão sepultados
nas estantes da última biblioteca.

Forasteiro de mim mesmo,
estou escondido na página 19
do primeiro livro à esquerda.


AAF – 20/06/2016 – 14h01

11 Ando escondida entre as páginas dos livros (TCRM)


Ando escondida entre as páginas dos livros
Das últimas bibliotecas.

Os poetas morreram antes de seus livros.
Jazem nas estantes como memórias de dias idos.
A poesia árida fere, a palavra é áspera,
Golpe de faca, cutelo,
Para abrir as entranhas do novo.

Ninguém lerá o poema, mas ele espera ser lido.
Um dia, o poema será lido.

E o que está no poema?
Não é fala, mas a palavra dura.
Não é o homem, mas o seu reflexo.
Não é a voz, mas o silêncio.
O pensamento que cabe em cada sílaba
Sussurrada na biblioteca de Borges.

Os sábios construíram seu conhecimento do nada,
Tiraram coelhos de cartolas, pombas de lenços vermelhos,
Serraram moças ao meio, como se fosse possível recompô-las.
Fecharam-se em armários com fundos falsos
E caíram sobre um colchão duro.

A palavra é mágica.
E sem nenhum destemor, opera milagres.
Sem truques, sem varinhas de condão,
Sem encantamentos.

Não se constrói um poema do nada.
Não se escreve sobre o que não se conhece,
Mas deciframos o que não sabemos
Por essa rara urdidura que a palavra tece.


TCRM – 20/06/2016 – 18h22

12 Decifrar o que não se sabe (AAF)


Decifrar o que não se sabe
por essa rara urdidura que a palavra tece
como se querer adivinhar
aquilo que nunca acontece.

Vive em mim um poema morto
e para mim é o bastante.

As palavras não bastam mais.

Minha boca costurada
diz bem o que quero dizer.

Sei apenas que são 8 horas da noite
e a mulher que espero
morreu em 1999.

Para mim é a mesma coisa
ir embora para casa
ou atravessar para o outro lado da rua.


AAF – 23/06/2016 – 12h34

13 Atravesso para o outro lado da rua (TCRM)


Atravesso para o outro lado da rua
Onde tudo deixa de ser belo.
Daqui da minha janela, enxergo o mundo
Ao contrário de quem o vive.
Eu não vivo como eles.
Pela janela, o vizinho dá notícias de que vai bem.

Deste lado, continuo a arrumar os livros
Nas estantes, nas prateleiras mais altas,
Para criar distância entre mim e eles.

Os livros foram feitos para se hospedarem conosco.
Saem da prensa prontos para habitarem entre nós,
Nós, que nem reparamos quantos livros temos.

Minha casa tem muitos livros.
Alguns vivem comigo há cinquenta anos.
Outros, comprei outro dia.
Mas todos são colocados como relíquia nas prateleiras.

Às vezes, os livros se espremem entre outros
E querem sair para tomar um ar.
Isso me disse a dona de um sebo em São Paulo
No centro da cidade.

Levo meus livros para passear.
Dou meus livros (os que escrevo)
Ou compro novos quando entro na Travessa.
Ou não compro.
Eu deveria ser proibida de comprar mais livros.

E quando me canso de alguns deles,
Chamo o dono da Buriti e vendo tudo para ele.
Canso, não. Não quero mais.
Preciso de mais espaço para novos livros.

Um dia, os livros ocuparão menos lugar.
Mas isso talvez aconteça quando eu não tiver
Mais estantes.
Enquanto eu estiver por aqui,
Terei estantes cheias de livros.
Desses que escrevo e desses outros que compro por aí.

Livros (e o que está escrito dentro deles) são importantes
Pela importância que nos dão. Nós que nos importamos
Tão pouco com eles enquanto nos esperam nas estantes.

O livro e a poesia deveriam ser chamados de essenciais.


TCRM – 23/06/2016 – 20h11

14 Estou me despedindo de mim (AAF)


Estou me despedindo de mim
com meu terno de domingo,
a gravata vermelha não me parece bem,
mas meus sapatos azuis sem rumos
podem me explicar melhor.

A amiga me diz
que o livro e a poesia
deveriam ser chamados de essenciais.

Essencial é viver,
enquanto der tempo.

Da poesia só guardo ferimentos
de uma vida inteira
costurados em livros perdidos,
esgotados em si mesmos
nas letras que não quero mais dizer.

A palavra
mais ferida dessa poesia
sempre amarga
com a imagem esquecida
nesse corte
que se alarga,
essa dor já consumida
que sempre pega,
nunca larga.

Queria ser santo,
talvez poeta em meu país,
mas as igrejas
caíram pelo espanto
e dos meus altares
me desfiz
e assim desfeito em desencanto
a poesia não mais me quis.

Nada guardo de mim
senão uma alma com roupas brancas
e dois terços de minha mãe
que escondi numa gaveta.

Tentarei destruir todos meus poemas
para me vingar do tempo perdido
em que eu pensava viver,
mas morria sempre
no final de cada história.

Quero somente
ficar diante do mar de Portugal
como um poeta
que se despede do mundo. 


AAF – 25/06/2016 10h23

15 Eu me despeço do mundo todos os dias (TCRM)


Eu me despeço do mundo todos os dias.
Não é verdade que não penso na morte.
Penso sempre na morte, 
Porque está entre as páginas do livro que fecho,
Nas dobras dos lençóis em que me deito,
Nos restos de comida sobre o prato.
Tudo morre a cada dia e ressurge glorioso
Como um vaga-lume, uma borboleta, um escaravelho.
E dura o tempo que durar, sem se abalar com nada.

Eu me despeço da luz como se não mais a visse,
Me despeço dos sons que se aquietam,
Me despeço das formas que cessam de existir.

Me despeço dos templos e igrejas
Onde guardamos as imagens dos santos
Que repousam ali eternamente. 
Me despeço de horizontes sempre limpos,
Cujas montanhas à distância se alongam ao olhar.

Serei a última irmã das palavras para deixá-las partir.
O mar banha o contorno da terra, cercando-a de sua existência fluida.
Os corpos se chocam contra sua onipresença magnânima.

Aceno adeus à paisagem por ser minha,
E todas as coisas ditas e não ditas
Permanecerão acesas como fachos de luz no despenhadeiro.

Somos os irmãos das palavras,
Porque as inventamos para os poemas que ousamos escrever.

Tudo é dito hoje e se apaga.
A palavra escolhida é o poema.


TCRM – 27/06/2016 – 2h42

16 Tudo é dito hoje e se apaga (AAF)


Tudo é dito hoje e se apaga,
tudo é dito hoje e se apega.
A palavra escolhida é o poema,
o poema escolhido é a palavra.

Da minha janela fechada
vejo as pessoas nas ruas
falando sozinhas.

Lembro das mulheres que amei,
esquecidas na memória
que não tenho mais,
mas lembro,
sempre me lembro de bocas vermelhas
e salivas em línguas molhadas
nas palavras de ais
escorrendo na pele.

As pessoas falam sozinhas
tropeçando nas calçadas
e as ruas todas se fecham
com cercas de arame.

O poema é isso que surge
assim sem dizer
na poesia que desaparece.

O poeta que vivia e mim
matou-se ontem à noite
e ele fez bem em acabar com a vida.

Deixou algumas palavras
numa carta inexistente
e foi embora como se não fosse.

Eu não falo sozinho,
porque choro.

No entanto, o que me desperta
é a lágrima que esfria o rosto
em que me escondo de mim.


AAF – 29/06/2016 – 11h11

17 Uma lágrima esfria meu rosto (TCRM)


Uma lágrima esfria meu rosto.
Espero sentada à janela que cheguem as palavras exatamente como são.
Não é preciso esperar muito, pois estão ávidas de sentido.
Querem logo se juntar às outras e construir frases,
Essas pontes entre razão e sentimento.
O que explica um poema senão como eu me sinto diante de tudo?
A vida seria mais simples se fosse feita só de palavras,
E não de gestos abruptos e silêncios.
Quem eu sou não importa.
Importa que eu diga o que tenho a dizer.
Não é o que sinto, apenas, mas o que penso.
Ninguém me pergunta o que penso, só o que sinto.

Eu estou bem.
Estamos bem. Estamos todos muito bem.
Mesmo que não estejamos.
Mesmo que não desfrutemos metade do que nos foi dado.
Este paraíso foi excluído dos orbes celestes
E só recebe entes desgarrados.
O que fizeram de nossa antiga história?
Havia mais tempo para vivê-la.
Havia mais tempo para sentar à mesa e conversar.
Hoje as conversas foram expulsas das mesas
E viraram discussões.
Ninguém mais ama conversar.
Convergir. Converter-se ao outro.
O que fizemos de nosso tempo que não temos mais horas de sobra?
Nem horas para nós mesmos?
Onde fomos parar que não estamos mais em nós?

Abro um livro. Leio a primeira palavra.
Escuto-a. Um grande silvo atravessa a palavra enquanto é dita.
Um sopro antigo que vem de outro tempo.
A palavra sussurra seu sentido desde sempre. 
E antes de pronunciada, já era ela mesma, desde que se formou.

Formamos as palavras para os nossos sentidos.
Para o que entendemos e queremos dizer,
Então as palavras dizem.
Ouçamos o que elas têm a dizer.
Sopro, silêncio, segredo, sibilantes sílabas de nosso degredo.


TCRM – 29/06/2016 – 13h

18 As palavras dizem, é preciso ouvir (AAF)


As palavras dizem, é preciso ouvir.
As palavras dizem, é preciso calar.

As palavras calam
e a memória salta da cabeça
como um poema doente
no centro cirúrgico da poesia brasileira.

Alguns poetas usam bisturis
na poesia em coma
e cortam sílabas e vírgulas,
mas a salvação é difícil.

O poema adoeceu com o tempo,
sem perceber que estava sendo destruída
pela palavra que mente
na palavra escrita,
no verso inconsequente.

O verso diverso,
o verso do avesso.

Perdida em si,
a poesia tenta viver
num tempo de equívocos.

O poema lembra imagens parnasianas
de uma igreja no crepúsculo,
mas só para rimar,
é manuseado quase só
por gente sem escrúpulo.

Assim, não ouço palavras,
nem falo,
porque quase nada
há para ouvir, falar ou escrever.

Boa noite, senhores tecnocratas
da poesia do Brasil,
espero não vê-los nunca mais.

Eu por mim prefiro esconder-me
num móvel de coisas inúteis
que não servem para mais nada.   


AAF – 30/06/2016 – 9h56

19 Quantas palavras ditas que somente hoje entendo (TCRM)


Quantas palavras ditas que somente hoje entendo.
Espero a noite descer para dormir mais cedo.
Os homens se recolhem no frio com suas luvas enlutadas.
Deixamos para trás todos os sofrimentos inúteis.
O sofrimento é inútil, embora nos ensine a persistir.
A palavra é o alimento.
A palavra diz o que o homem se nega a dizer.
A palavra é o homem, em sua mais completa transparência e sedução.
A palavra seduz o homem ao ler o poema.
O poema o completa e lhe diz que ele não precisa sofrer,
Mas ele sofre.

Por que sofrem os homens diante de si mesmos?
Por que o poema traz tanto sofrimento, enquanto a palavra é dita?
Ela foi feita para acalentar, acolher,
E amenizar o sofrimento do homem.

Não há mais sermões da montanha,
Não há mais orações no Monte das Oliveiras,
Não há mais peixes no Mar da Galileia,
Não há mais crucifixos no Monte Calvário.

Minha oração é o poema.
Nele aprendo quem sou e quem são as pessoas.
As pessoas se refletem no poema e o poema as espelha.
Somos os derradeiros profetas,
Os derradeiros discípulos da palavra.

Os poemas atravessam os séculos e nos encontram.


TCRM – 30/06/2016 – 13h26